terça-feira, 9 de março de 2010

Dia Internacional da Mulher- A mulher egípcia

Sei bem que foi ontem o Dia da Mulher, no entanto não consegui acabar este artigo a tempo...

Com base num pequeno livro de Christian Jacq (As Egípcias), alguns conteúdos do Dicionário do Antigo Egipto (dir. Luís Manuel de Araújo) e com algumas achas para a fogueira de minha autoria, aqui fica um texto um pouco mais longo que o costume...

Clemente de Alexandria, um dos primeiros padres cristãos, afirma em 180 da nossa era que "em Cristo não há macho nem fêmea". Contrariamente, Tertuliano, que se converteu ao Cristianismo em 193, defende que à mulher "não é permitido falar na igreja, nem ensinar, baptizar, fazer oferendas, reclamar uma parte de uma função masculina ou recitar qualquer ofício sacerdotal". Acaba por ser nesta última linha que as Religiões do Livro irão proceder, condenando as mulheres a um estado de inferioridade espiritual, que mais ou menos camuflado, persiste ainda hoje nas mentalidades eclesiásticas.

Champollion observa, no seu tempo, que no Egipto dos Faraós a mulher ocupava uma posição absolutamente extraordinária em relação à cultura greco-latina clássica mas mesmo também em relação à cultura do século XIX.

Se o grau de emancipação da mulher é a medida do grau de emancipação geral de uma sociedade, atentemos então em alguns exemplos emblemáticos do Antigo Egipto.

1. Ísis, criadora do universo, soberana do céu e das estrelas, senhora da vida, regente das divindades, maga de excelentes conselhos, Sol feminino que tudo marca com o seu selo; os homens vivem às tuas ordens, sem o teu acordo nada se faz.

Verdadeiramente vitoriosa sobre a morte, Ísis é uma deusa cuja popularidade passa as fronteiras do Egipto. Ela sobrevive à extinção da civilização egípcia e o seu culto espalhou-se por toda a bacia do Mediterrâneo. Num tempo em que o homem devia ser o objecto de admiração, o culto a uma mulher continuava forte e resistia às tentativas de aniquilação conduzidas, nomeadamente, pelo Cristianismo. Reza o ditado que "se não podes vencê-los, junta-te a eles". Ísis ganhou novas roupagens e o epíteto de Nossa Senhora, sobre o templo isíaco de Paris (par Isis ou per Isis), nasceu a catedral de Notre Dame.

2. Merit-Neit, Hetep-Heres e Meresanq

Maneton, sacerdote egípcio da época tardia que dividiu as Dinastias reais em 30 (modelo seguido ainda hoje, acrescendo-se a Dinastia Ptolomaica), afirma que as mulheres podiam exercer funções régias. A lei diz: uma mulher pode ser faraó. Se a consagração de algumas confirma isto mesmo, existem ainda outros casos que, apesar de aparentemente não existir consagração oficial, levam-nos a pensar que possam ter exercido o cargo, pelo menos de forma oficiosa.

O facto de Merit-Neit ter o túmulo Y em Abidos e o túmulo 3503 em Saqqara aponta para esta possibilidade, uma vez que, supostamente, só um faraó podia ter este privilégio. Além disso, nas estelas de Merit-Neit não existe a representação do falcão Hórus, protector do Faraó. Esta contradição parece apontar para a ideia de grande importância real, mas sem reconhecimento oficial do cargo.

O caso de Hetep-Heres é desde logo curioso porque a sua câmara funerária foi aberta precisamente a 8 de Março de 1925. O significado do seu nome será "o faraó é plenitude graças a ela". Esposa de Snefru e mãe de Quéops, os seus títulos revelam a importância desta grande dama: mãe do rei do Alto e Baixo Egipto, companheira de Hórus, superiora dos talhantes da Casa da Acácia, para a qual tudo o que ela formula se realiza, filha do deus, do seu corpo, Hetep-Heres.

Meresanq III é um caso notável. Ela possui o título de sacerdotisa do deus Tot, criador da sagrada linguagem hieroglífica. Meresanq tinha acesso à ciência sagrada e aos arquivos dos templos, detendo o conhecimento das escrituras rituais e provando que o universo do conhecimento estava aberto à participação da mulher.

3. Nitócris, a primeira mulher Faraó

Nitócris (Neitikert) é a primeira mulher a ter formalmente o título de "Rei do Alto e do Baixo Egipto" e subiu ao trono em 2184 a.C., reinando dois anos, um mês e um dia segundo os arquivos de época ramessida. Um texto de Eusébio cita Maneton, que se se refere à Faraó da seguinte forma: Uma mulher, Nitócris, reinou; tinha mais coragem do que os homens da sua época e era a mais bela de todas as mulheres, loira e de faces rosadas. Diz-se que construiu uma terceira pirâmide em Gizé.

Nitócris protagonizou uma lenda bem conhecida... enquanto se banhava no Nilo, um falcão apoderou-se de uma das suas sandálias, voou até Mênfis, onde residia o faraó, e deixou-a cair no colo do monarca. Imaginando o delicado pé que as dimensões e requintado objecto faziam adivinhar, mandou procurar a sua proprietária por todo o país. Os emissários do faraó encontraram-na, conduziram-na ao palácio real e foi amor à primeira vista...

4. Hatchepsut

No vigésimo nono dia do segundo mês de Inverno, ano 2 do reinado de Tutmés III, o oráculo do deus Ámon, no grande pátio do templo de Luxor, anuncia a Hatchepsut que ela viria a reinar no futuro.Cinco anos mais tarde ascendeu a Faraó.
Nos baixos-relevos de Deir el-Bahari, Ámon-Rá refere-se a ela nestes termos: Aquela que está unida a Ámon, Hatchepsut, será o nome da filha que depositei no teu corpo... É ela que exercerá as funções de faraó, radiosa e benfazeja, no país inteiro.
O seu reinado terá sido pacífico e muito próspero, com amplo sucesso no campo das obras públicas e das relações comerciais, sendo célebres as suas expedições ao Punt.

5. Nefertiti

O seu nome significa "A Bela chegou". Suma sacerdotisa do culto de Áton, Nefertiti podia dirigir sozinhaos rituais e a apresentação de oferendas ao deus Áton.

Neferiti e Akhenáton parecem governar em pé de igualdade, aparecendo sistematicamente representado o casal régio nas mais diversas cenas religiosas e de Estado. Existe, inclusive, uma pintura mural em que se vê a rainha enquanto faraó a destruir o inimigo, acto tradicionalmente atribuído ao rei.


6. Fora da realeza...

Apesar de nuca ter existido matriarcado, muitas foram as mulheres determinantes na vida pública do Antigo Egipto. Além das já referidas, outros nomes sonantes facilmente vêm à memória: Nefertari, Tiye, Tauseret, Cleópatra VII... A mulher das classes mais elevadas parece, de facto, ter um estatuto fora do comum não só para aquela época, mas mesmo em comparação com os dias de hoje. Ainda assim, as taxas de participação das mulheres de melhor condição social sempre foi mais elevada, quando comparada à restante população... Mas e a comum mulher egípcia?

No Antigo Egipto nenhuma lei obrigava uma mulher a viver com um homem. Uma mulher solteira tinha autonomia jurídica, bens próprios que podia gerir livremente e o casamento não era obrigatório. O pai não tem o direito de impor um pretendente à filha. Aparentemente, também a virgindade à data do casamento não seria questão de honra. Um das maiores curiosidades da altura prende-se com os casamentos experimentais, ou seja, contratos de casamento temporários para aferir se era, de facto, a melhor opção.

O casamento egípcio antigo era a vontade de fundar uma casa (gerep per) ou viver juntos (hensi irem), não se identificando com uma obrigação moral, religiosa ou administrativa. No respeito pela individualidade de cada um, a mulher não adoptava o nome do marido. Existia divórcio (!) e, neste caso, o marido tem que restituir os bens que a mulher levou para o casamento e ainda tem que dar-lhe um terço de tudo o que tenha sido adquirido a partir do dia em que o contrato foi estabelecido.

À excepção do exército, quase todos os sectores económicos que caracterizavam o Egipto Faraónico estavam abertos à participação da mulher. São conhecidos casos de mulheres que assumiram funções como vizires/tchaty, escribas, médicas e cirurgiãs (inclusive médicas-chefe), tesoureiras, funcionárias administrativas, gestoras de negócios, camponesas, chefes-artesãs, pilotos navais, inspectoras, juízas...

A mulher egípcia tem direito a legar bens e a ser herdeira em pé de igualdade com os homens. O caso da dama Naunaqté é extraordinário. Ela decide legar o seu património a quem lhe prestasse assistência na velhice, sem estar à espera de recompensa. Em testamento acaba, desta forma, por deserdar os quatro filhos que não a socorreram, beneficiando três homens e duas mulheres.

Ainda que existissem, com certeza, muitas outras situações em que o estatuto da mulher pudesse não ser o melhor, a verdade é que o Antigo Egipto revelava ser bastante avançado no entendimento que fazia da condição feminina. Pelo menos bem mais do que as civilizações suas contemporâneas, tais como a Babilónia, Assíria e Israel. O direito, assente no princípio teórico da maet (ordem cósmica), não consagrava privilégios de sangue, de classe ou de estatuto económico. A mulher era, neste âmbito, igual ao homem nos direitos fundamentais.

Hoje em dia, com todo o avanço técnico, científico, decorrido tanto tempo histórico, qual será o motivo que leva à perpetuação das desigualdades? Talvez o pequeno enorme pormenor: a desigualdade interessa de facto ao sistema de produção capitalista, como factor de desestabilização e de possibilidade do aumento de lucros. Sim, porque a história atesta que as mulheres são perfeitamente capazes de intervir em qualquer aspecto da vida humana, tal como os homens.

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